Falemos de uma figura pública controversa, conservadora, retrógada em muitos sentidos. Um homem cujas qualidades não se sobressaem perante suas deficiências; seu carisma nunca foi relevante. Sua soberba acometia o debate; ele foi inúmeras vezes humilhado à nível nacional e internacional. Seu público é um, o mesmo que Nixon chamara de silent majority. Almejava o sentimento antigo, queria ressaltar a figura dos founding fathers de uma maneira romântica. Ideais liberais, ao mesmo tempo conservador, até demais, nos costumes. Dono de algumas frases e brigas históricas. Teve seu momento de glória, e realmente foi bem sucedido em seu projeto. No Brasil são poucos que o conhecem, mas também são míseros os quais reconhecem Dick Cavett neste país. Poucos que lembram das brigas com Gore Vidal, discussões com Chomsky, Kerouac. Poucos assistiram ao notório episódio com Allen Ginsberg, o poeta beat mais bem sucedido de seu tempo. Eu gosto de rememorar sua entrevista com Jorge Luis Borges, pela qual eu tive maior apreço. Raras são as oportunidades de existir um programa como o Firing Line nos dias atuais.
Falo de William F. Buckley Jr., apresentador de Televisão, muito popular durante a década de 1960, momento caloroso da história norte-americana, na qual findava-se a direita, em prol de uma “revolução cultural”. Tivemos o maio de 1968, os protestos em Washington, inúmeros festivais de música, inclusive Woodstock, no famoso Summer of Love de 1969. A efervescência cultural norte-americana, enfatizada por expoentes como Bob Dylan na música, Malcom X e Martin Luther King na política, Herbert Marcuse na filosofia e um ressurgimento dos beatniks na literatura, ditava um ambiente extremamente fértil de criação e contestação social.
A New Left, influenciada em maior medida por livros como O Homem Unidimensional, Eros e Sociedade, pela revolução cultural Maoísta na China, o novo cinema de Godard e Glauber Rocha, Antonioni e Fellini, criticava pertinentemente a materialidade norte-americana. Os negros sofriam violentamente ao redor dos EUA, principalmente no Sul, lugar no qual eles ainda não podiam votar. Esse estado de apartheid, na década de 1960, era a causa das maiores revoltas, comoções, expressas em inúmeros combates e resistências, por grupos como os Black Panthers. Um filme que explicita toda a voracidade inclusa neste período no sul norte-americano é Mississipi Burning, estrelado por William Dafoe e Gene Hackman.
Buckley se instala como uma voz da contracultura conservadora. Por mais contraditório que soe, naquele momento as revoltas contra o status quo universitário, midiático, econômico e político tornava as vozes conservadoras num espantalho a ser abatido.
Buckley estudou em Yale e com vinte e cinco anos de idade publicou seu primeiro e já best-seller livro, chamado God and Man at Yale, no qual o autor disseca sua educação superior, denotando que a religião fugira do locus acadêmico e, desta forma, a decadência dos valores e morais humana era iminente. Conservador de carteirinha desde muito jovem, o amor por Deus e tudo que Ele significa para a sociedade era tão grande quanto seu ódio sentido por aquela esquerda conspícua, cabeluda, maconheira, the beautiful and loving people, de San Francisco e da costa oeste.
Sua retórica sempre foi seu ponto alto. Buckley havia sido campeão nos deates de sua faculdade, e é por isso que seguirá sua carreira tão fidedignamente. Pois ele percebeu algo muito importante: ganhar de qualquer forma é fácil, mas não te leva longe enquanto figura pública. O importante, de verdade, é ganhar enquanto em solo inimigo, jogando o jogo deles. As técnicas de debate e retórica, aprendidas e digeridas profundamente na faculdade, instauradas em sua alma, lhe trouxeram um êxito extraordinário em sua profissão. Por toda essa bagagem intelectual, e através dela, Buckley fundará um dos primeiros e mais importantes think tanks conservadores dos EUA, além da revista National Review, e ter apresentado seu programa The Firing Line, em rede nacional, por mais de três décadas.
Entrevistará e debaterá meia América, além de outras personalidades internacionais. Uma de suas aparições mais significativas, e depressiva neste sentido, foi seu debate com James Baldwin em Cambridge, na Inglaterra. Buckley teve a coragem, insensata em todas suas camadas, de pronunciar o seguinte: “there are no proofs that slavery was a successful project economic wise”. Não havia consenso, segundo o gênio, que a escravidão norte-americana deu lucros econômicos para os brancos. Ele proferiu essa frase diante um homem com H, James fucking Baldwin. Buckley deveria estar extremamente dessensibilizado, alienado do sentimento humano de ser, arrogante o suficiente para achar que Deus estava do seu lado, contra tudo e todos.
Infelizmente, Buckley sempre foi assim. Suas entrevistas objetivavam o ganho próprio e a humilhação do outro. Sempre queria ter um pé na frente na conversa, alguma vantagem em sua posição. Sempre houveram intenções egoístas neste projeto conservador. Com Ginsberg, faltou pouco para o apresentador não rir de sua poesia livre. Com Chomsky, faltou pouco para ele não acabar mais cedo o programa, pela tamanha distância intelectual entre os dois (favorita para você sabe o lado). No debate entre três beats, Kerouac e mais dois, faltou ele expulsar o maior expoente da literatura norte-americana do palco, pela sua “falta de educação”.
Mesmo assim, Buckley representa um ponto alto na história conservadora. Conversava (mesmo que unilateralmente) com todos aqueles que queriam a discussão. Dava voz a todos, e por isso representa algo decente, pelo menos para mim. Seus pares conservadores, sentados em Torres de Marfim, lendo a mesma literatura e poesia fajuta de sempre, nunca ousaram pisar onde Buckley correu. Ele realmente acreditava no seu propósito e, na maioria dos sentidos, Buckley foi um homem bem sucedido.
Diferentemente do que o Financial Times e seu redator, que beira o ridículo, propõe, Buckley teve muito sucesso. Basta olhar para os EUA para reconhecer a ideologia dominante. Faz pelo menos cinquenta anos que Buckley venceu seu embate. A era neoliberal norte-americana é conservadora em todos os seus vetores. A crença no indivíduo, as religiões, a falta de sensibilidade, a ausência de causas coletivas, todas essas características ascendem hodiernamente, desaguando no mesmo mar infértil dos anos trinta do século passado.
Clamar que a revolução de Buckley deu errado é fechar os olhos perante a realidade presente. É prosseguir com a mesma arrogância dessa esquerda de lavanderia que segue perdendo há décadas. Coragem e honestidade intelectual são as duas qualidades imprescindíveis neste mundo. Buckley não tinha a última, mas é disso que o povo gosta, fazer o quê…